sexta-feira, fevereiro 17, 2006

Da série "Divagações em terceira pessoa"

Crônica de verão

E você fica lá, apesar do calor infernal. O ar está sufocante, é puro CO2, e você lá, tentando parecer bem apesar do calor, apesar do calor você quer parecer atraente e acima de tudo inteligente. Para ele. Só para ele. Ele também está com calor; na verdade, ele é o que mais se incomoda, mas ele tem muitas coisas para fazer, no "caos", como ele diz, num tom mais baixo, como se falasse apenas para si mesmo. Mas você ouviu, apesar de estar um tanto quanto distante e apesar do falatório das pessoas ensandecidas, mais agitadas que o normal por causa do calor.
Você ouve o que ele diz, e às vezes você acha que consegue ouvir o que ele pensa. Ele também te ouve. Quando você fala qualquer coisa nesse tom, nesse tom de voz que todos usamos de vez em quando para falar para nós mesmos, ele ouve e repete, e vocês trocam um olhar mínimo, de passagem, um olhar que sequer existe, ele existe apenas para vocês dois, assim como essas falas. Você um dia citou Nelson Rodrigues, ele repetiu, ele provavelmente sabe que se trata de Nelson Rodrigues e você fica feliz, pensando que ele agora te acha mais inteligente. Você quer ser a mais inteligente para ele.
Você quer que ele seja seu, você o quer com todos os defeitos, com a baixa estatura, com aquela postura um pouco maluca, aquela postura que as pessoas muito inteligentes têm e que você ainda quer ter. E você passa calor feliz porque está passando calor com ele.
Você não tem o que dizer, você não consegue dizer nada, e fica enciumada quando outras pessoas o chamam e ele vai, atencioso, conversar com elas, naquele calor infernal. E você se pergunta se ele é realmente tudo o que você pensa que ele é. E você se pergunta se ele te vê como mais uma ou se ele te considera especial. Mas aí você se lembra de que ele nem te conhece. E você escreve como o livro que está lendo no momento, de Roberto Drummond, que já está acabando, e sua mão direita dói porque ESTÁS digitando muito rápido e há muito tempo este texto.
Você se sente um tanto quanto ridícula, ridícula e estaganada, e não vê o que pode fazer para mudar essa situação. Mas a questão é: se você realmente tivesse chance de fazer alguma coisa, de tomar qualquer iniciativa, de flertar, de se mostrar de verdade a ele, você o faria? Não, provavelmente não, você não sabe fazer isso, você é praticamente uma adolescente e nunca teve um relacionamento sério, e todos os homens que você admira são muito distantes - talvez por isso você os admire.
E você nem despreza tanto o calor, porque, apesar dele, você troca olhares com o homem que aparenta ser tudo o que você sempre quis.

Texto escrito em 2005, no início do verão.

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